top of page

Lava Jato e ineficácia disciplinar do CNMP*

Hugo C. Melo Filho

Hugo Cavalcanti Melo Filho


1. Introdução


A partir de 9 de junho de 2019, o site The Intercept Brasil publicou uma série de treze reportagens (até 28/7/19) revelando a troca de mensagens entre o então juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba, Sérgio Moro, e integrantes da força-tarefa da denominada Operação Lava Jato, cujo conteúdo escancarou o caráter partidário da atuação do Ministério Público e do Judiciário e o direcionamento que marcou o processo que conduziu o ex-presidente Lula à prisão.


As reportagens evidenciaram, ainda, o uso da Operação Lava Jato para promoção pessoal, seja do magistrado, que foi conduzido à condição de Ministro da Justiça e da Segurança Pública pelo presidente que, com as manobras levadas a efeito, ajudou a eleger, e dos Procuradores que se valeram da notoriedade alcançada para ganhar muito dinheiro, em especial Deltan Dallagnol.


A força-tarefa do MPF no Paraná foi designada em abril de 2014 e é formada por Procuradores da República em trabalhos de investigação na primeira instância da Justiça Federal do Paraná[1].


Ainda no ano de 2016, começaram a ser apresentadas reclamações disciplinares ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), apontando desvios dos integrantes da força-tarefa. Este texto analisa a atuação do CNMP em face dos graves fatos envolvendo membros do Parquet, a ineficácia disciplinar e o aparente corporativismo do órgão, bem como a expectativa que se pode construir a partir desses elementos.


2. O CNMP como órgão de controle do Ministério Público Nacional


Assim como o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) foi instituído pela Emenda Constitucional n.º 45/04. O CNMP é composto por catorze membros, sendo oito integrantes da carreira: o Procurador Geral da República, um representante de cada ramo do Ministério Público da União (MPF, MPT, MPM e MPDFT) e três representantes dos Ministérios Públicos dos Estados. Além desses, há dois membros da carreira da magistratura, um indicado pelo Supremo Tribunal Federal e outro pelo Superior Tribunal de Justiça; dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e dois cidadãos indicados um pelo Senado e outro pela Câmara dos Deputados.


Dentre as competências do CNMP (art. 130-A, § 2.º, Constituição) estão o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros; apreciar a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público; receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Ministério Público da União ou dos Estados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional da instituição, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos; rever os processos disciplinares de membros do Ministério Público julgados há menos de um ano.


Compete ao Corregedor Nacional, escolhido pelo Conselho dentre os membros do Ministério Público que o integram, receber reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos membros do Ministério Público e dos seus serviços auxiliares (art. 130-A, § 3.º, Constituição).


Embora a atuação do CNMP tenha promovido avanços no Ministério Público, especialmente nos segmentos que, até o advento da Emenda Constitucional n.º 45/04, não se submetiam a nenhum tipo de controle administrativo, como era o caso dos Ministérios Públicos Estaduais, é sentimento corrente que a expectativa quanto à atuação disciplinar do órgão não foi atendida, satisfatoriamente. Por isso mesmo, a própria existência do Conselho foi e continua sendo questionada.


A advogada Tania Maria de Oliveira, da Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia, em artigo recentemente publicado, manifesta a convicção de que o CNMP, assim como o Conselho Nacional de Justiça, foi capturado “por um corporativismo militante”. Afirma que, “em uma pretensa legitimidade e autocontenção”, “evidenciam-se com uma capacidade incompreensível de forjar argumentos que justifiquem o arquivamento de reclamações e representações apresentadas por cidadãos e coletivos sociais, solicitando a investigação de condutas com fortes indícios de desvios, cujos exemplos mais recentes são, no mínimo, escandalosos”[2].


As estatísticas do CNMP mostram que em 2014 e 2015 apenas 14 sanções foram aplicadas. Em 2016 e 2017 houve significativa ampliação para 52 e 63, respectivamente. Mas em 2018 as penas foram reduzidas a apenas 26, sendo uma de admoestação verbal, uma de advertência, doze de censura, uma de demissão, uma de disponibilidade compulsória, uma de remoção compulsória e treze de suspensão[3].


O que mais impressiona nas estatísticas de 2018 é o fato de não ter sido aplicada nenhuma sanção disciplinar a membro do Ministério Público Federal. Das 26 sanções aplicadas em 2018, 24 foram a membros dos Ministérios Públicos Estaduais e 2 a membros do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Houve, ainda, três confirmações de penas impostas nos órgãos de origem, em sede de Revisão de Processo Disciplinar, todas em face de membros dos Ministérios Públicos Estaduais[4].


3. A condutas dos membros do MPF reveladas pelo The Intercept[5]


O espaço reservado aos autores desta obra coletiva não permite a transcrição dos diálogos publicados pelo The Intercept. Entretanto, cumpre indicar, em apertada síntese, do que se trata. As conversas reveladas mostram comportamento partidário dos integrantes da força-tarefa, manifestações explícitas em desfavor do Partido dos Trabalhadores e do candidato Fernando Haddad e contra o STF, especialmente o Ministro Ricardo Lewandowski, que autorizou a entrevista de Lula a Mônica Bergamo e Florestan Fernandes, e contra a Procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que anunciou que não recorreria da decisão.


Os procuradores vibraram com a ação proposta pelo Partido Novo e com a decisão do Ministro Fux que cassou a decisão de Lewandowski.


A troca de mensagens deixa claro que Sergio Moro era o coordenador de fato de força-tarefa e que Deltan Dallagnol se colocou sempre como subordinado e adulador, com elogios excessivos e deslumbrados. Dallagnol recebia e cumpria determinações de Moro quanto à ordem das fases da operação, novas operações, alterações de estratégia, indicação de pistas e mudança de procuradores em audiências, interposição de recursos. As conversas com outros membros da força-tarefa deixam claro que Dallagnol apresentou denúncia contra Lula sem qualquer prova – ou mesmo convicção - de prática delituosa.


A força-tarefa aceitou e cumpriu sugestão de Moro no sentido de realização de campanha pública contra o ex-presidente Lula, réu que seria julgando, e publica nota oficial para dar “conforto ao juízo”. Por outro lado, Dallagnol solicitou recursos públicos a Sergio Moro para a produção de um filme sobre as 10 Medidas Contra a Corrupção.


Exsurge das transcrições que o MPF envolveu Fernando Henrique Cardoso nas denúncias (depois de prescritos eventuais crimes) apena para passar a impressão de imparcialidade e que não seguiram adiante por que Moro não queria melindrar o importante apoiador.

Os integrantes da força-tarefa, a partir de sinal verde de Moro, cogitaram interferir na política de outro estado soberano, que reputavam uma ditadura, ao argumento de que o povo teria direito de insurgência.


As mensagens mostram que Deltan Dallagnol, “coordenador da força-tarefa da Lava Jato, montou um plano de negócios para lucrar com eventos e palestras na esteira da fama e dos contatos conseguidos durante a operação, com a constituição de uma empresa na qual eles não apareceriam formalmente como sócios, para evitar questionamentos legais e críticas”, além de um instituto sem fins lucrativos para pagar altos cachês a eles mesmos e de uma parceria com uma firma organizadora de formaturas para alavancar os ganhos do projeto.

Nessa esteira, Dallagnol proferiu palestra sobre combate à corrupção na Federação das Indústria do Ceará, pela qual recebeu R$ 30.000,00, além de passagem e hospedagem no parque aquático Beach Park para ele, a mulher e os dois filhos, programação que sugeriu a Sérgio Moro.


Fica claro que Dallagnol era uma espécie de intermediário entre empresas e membros do Ministério Público, inclusive o então Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, para a contratação de palestras, a preços elevados.


Dallagnol também foi pago (R$ 33 mil) por palestra encomendada por empresa investigada pela Lava Jato, a Neoway, mesmo após a empresa de tecnologia ter sido mencionada em delação, além de ter gravado um vídeo para a empresa, enaltecendo o uso de produtos de tecnologia em investigações.


Na última reportagem, o Intercept revela que Dallagnol participou de encontro de caráter “privado, com compromisso de confidencialidade”, organizado pela XP Investimentos, em junho de 2018, com representantes de bancos nacionais e estrangeiros. Dallagnol revelou que “já havia feito um evento parecido com o ministro do Supremo Luiz Fux”, do que “não saiu nenhuma nota na imprensa” e “pediu que a XP conversasse com a agência que organiza os eventos pagos do procurador, a Star Palestras, que acabou coordenando a contratação”.


Segundo revelação do Intercept, “Dallagnol e seus colegas discutiram, no Telegram, o potencial risco para suas imagens ao se sentarem com banqueiros, mas acabaram decidindo que valia a pena: ‘Achamos que há risco sim, mas que o risco tá bem pago rs”, escreveu Dallagnol em um chat privado com seu colega na força-tarefa, o procurador Roberson Pozzobon”.


Segundo o Valor Econômico, a XP Asset Management, do Grupo XP, e Itaú, que compraram ações na privatização da BR Distribuidora, e os bancos JP Morgan, Citi e Credit Suisse, como coordenadores da operação, eram alguns dos convidados da reunião com Dallagnol[6].

O suposto Coordenador da Lava Jato afirmou haver faturado quase R$ 400 mil com palestra e livros em 2018 [7].


O artigo 129, § 5.º, II da Constituição da República fixa as vedações aos membros do Ministério Público: receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais; exercer a advocacia; participar de sociedade comercial, na forma da lei; exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; exercer atividade político-partidária; receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei.


Por seu turno, a Lei Complementar 75/93, no artigo 236, elenca os deveres dos membros do Ministério Público da União, entre os quais se destacam: guardar segredo sobre assunto de caráter sigiloso que conheça em razão do cargo ou função; declarar-se suspeito ou impedido, nos termos da lei; adotar as providências cabíveis em face das irregularidades de que tiver conhecimento ou que ocorrerem nos serviços a seu cargo; desempenhar com zelo e probidade as suas funções; guardar decoro pessoal. Já o artigo 237 reitera as vedações constitucionais. Além disso, é dever do membro do Ministério Público declarar-se impedido ou suspeito, nos termos da lei (art. 238).


Pelo descumprimento das regras dos artigos 236 a 238, os membros do Ministério Público são passíveis das seguintes sanções disciplinares: advertência; censura; suspensão; demissão; e cassação de aposentadoria ou de disponibilidade (art. 239). A pena de demissão pode ser aplicada no caso de improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4.º, da Constituição Federal; condenação por crime praticado com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública, quando a pena aplicada for igual ou superior a dois anos; revelação de assunto de caráter sigiloso, que conheça em razão do cargo ou função, comprometendo a dignidade de suas funções ou da justiça.


4. Reações no MPF e no CNMP


Antes mesmo do vazamento dos diálogos dos membros da força-tarefa curitibana, contra alguns deles haviam sido propostas reclamações disciplinares. Por exemplo, os deputados Wadih Damous e Paulo Pimenta, ambos do Partido dos Trabalhadores, reclamaram contra os procuradores Athayde Ribeiro Costa, Januário Paludo, Júlio Carlos Motta Noronha e Roberson Pozzobon por suposta coação ao morador do Sítio de Atibaia Processo n.º 1.00275/2016-36. Em face do procurador Deltan Dallagnol foram apresentadas reclamações em face das palestras que vinha proferindo (1.00553/2017-36 e 1.00610/2017) e da declaração, nas redes sociais, de que estaria “em jejum, oração e torcendo pelo país” no dia do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula no STF (Processo 1.00302/2018-79). Todos foram arquivados [8].


O mesmo destino tiveram reclamações disciplinares apresentadas ao Corregedor Nacional do Ministério Público Federal. Em reunião com integrantes da força-tarefa, em 16/7/19, o corregedor-geral do MPF, Oswaldo José Barbosa Silva, informou aos colegas que “4 representações com pedidos de apuração da conduta dos procuradores […] foram arquivados com base na ‘imprestabilidade da prova’" [9].


Em conversa com Sérgio Moro, Dallagnol comemorou o fato de não ter sofrido punição de órgãos de fiscalização por dar palestras: “Não sei se você viu, mas as duas corregedorias —[do] MPF [Ministério Público Federal] e [do] CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público]— arquivaram os questionamentos sobre minhas palestras dizendo que são plenamente regulares” [10].


Em face do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima chegou a ser instaurado procedimento administrativo disciplinar, por conta de manifestação pública indevida em rede social a respeito do Presidente da República e de Ministros do Supremo Tribunal Federal (Processo n.º 1.00211/2018-24). Em 29 de maio de 2018, o CNMP decidiu não referendar o procedimento administrativo disciplinar.


Logo após a primeira publicação do The Intercept, em 10 de junho de 2019, o Corregedor Nacional do Ministério Público instaurou reclamação disciplinar para apurar "os fatos apresentados em reportagem do site The Intercept que publicou troca de mensagens envolvendo autoridades submetidas à atribuição do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)". Segundo consta da decisão, a instauração da reclamação foi feita a partir de solicitação dos conselheiros do CNMP Luiz Fernando Bandeira, Gustavo Rocha, Erick Venâncio e Leonardo Accioly [11].


A instauração pareceu representar uma mudança de postura do CNMP, em face das condutas dos integrantes da força-tarefa que, entretanto, não se confirmaria.

Em 16 de junho, o Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (CAAD) protocolou na Procuradoria Geral da República (PGR) uma notícia-crime contra o ex-juiz Sérgio Moro e os procuradores da República Deltan Dallagnol, Laura Gonçalves Tessler, Carlos Fernando dos Santos Lima (aposentado) e Maurício Gotardo Gerum, este procurador regional, imputando-lhes os crimes de organização criminosa, corrupção passiva, prevaricação, violação de sigilo funcional, crimes contra o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito. Em 25 de junho, Raquel Dodge decidiu arquivar a representação, mas disso o Coletivo só tomou conhecimento no dia 17/07/19, o CAAD foi informado do arquivamento da representação [12].


Notícias veiculadas no dia 15 de julho sinalizavam problemas no âmbito da Operação Lava Jato. Em 12.7.19, o coordenador do grupo de trabalho da Operação Lava-Jato na PGR, José Alfredo de Paula deixou a função, a dois meses do fim da atual gestão da procuradora-geral, Raquel Dodge [13]. Depois, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), vinculada à Procuradoria-Geral da República, divulgou nota, no próprio sítio eletrônico da PGR, criticando a Lava Jato e defendendo "a liberdade de publicação" das mensagens obtidas pelo site The Intercept Brasil. Assinaram anota os procuradores Deborah Duprat, chefe da PFDC, Domingos Dresch da Silveira, Marlon Weichert e Eugênia Gonzaga [14].


No mesmo dia, o PSOL protocolou uma representação contra o procurador da República Deltan Dallagnol no Conselho Nacional do Ministério Público, alegando a configuração de “fraude aos princípios constitucionais e aos valores do Ministério Público” nos diálogos vazados. De acordo com a representação, “a tentativa de obter lucro por meio da Operação Lava Jato – através de condutas imorais e ilegais – não pode ser tolerada pelas instituições democráticas. Trata-se de claro desvio de conduta e abuso ilegal das prerrogativas”[15].

Mas tudo não passou de alarme falso. A procuradora-geral da República e presidente do CNMP, Raquel Dodge, convocou todos os membros da força-tarefa da Lava Jato para uma reunião no dia 16.7.19. Foi o primeiro de Dodge com o coordenador da Lava Jato que se iniciaram as revelações dos diálogos pelo Intercept. A PGR nada dissera sobre o conteúdo das conversas, até então. Ao final da reunião, Raquel Dodge publicou nota hipotecando “apoio institucional, financeiro e de pessoal ao combate à corrupção e ao crime organizado, para que a Força-Tarefa Lava Jato cumpra com integridade seus objetivos” a fim de que “o patrimônio público seja preservado e que a honestidade dos administradores prevaleça.” Dodge informou que solicitou à Polícia Federal abertura de inquérito “para apurar os responsáveis pelo crime cibernético” [16].


Segundo o Painel, da Folha de São Paulo, a procuradora-geral instou os presentes a fazerem “uma avaliação do teor das mensagens obtidas e divulgadas pelo The Intercept – e a dizer se têm ideia do que está por vir. Os procuradores teriam dito que não há nada ilegal nas conversas. Ainda assim, ouviram pedido de cautela, para evitar mais exposição”. No mesmo espaço foi noticiado que o “apoio institucional expressado por Dodge à operação não satisfez procuradores que esperavam uma manifestação enfática em defesa dos colegas” [17].


Já o corregedor-geral do MPF, Oswaldo José Barbosa Silva, “ponderou que nunca houve um tentativa tão agressiva de minimizar o Ministério Público e, exatamente, por isso, a instituição enfrentará a situação de forma cuidadosa” [18].


No mesmo dia 16 de julho, o Corregedor nacional do Ministério Público, Orlando Rochadel Moreira, recebeu reclamação disciplinar apresentada pelas bancadas do Partido dos Trabalhadores contra os procuradores Deltan Dallagnol e Roberson Pozzobon, “por montarem plano para ganhar dinheiro” aproveitando-se da notoriedade obtida com a Lava Jato. [19]


As bancadas do Partido dos Trabalhadores protocolaram notícia-crime no Supremo Tribunal Federal, em 18.7.19, para abertura de processo criminal contra os procuradores Deltan Dallagnol e Roberson Pozzobon, com base nas mensagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil. Também requereram ao Conselho Nacional do Ministério Público a adoção de medidas administrativas necessárias à identificação dos financiadores do filme A Lei é para Todos, incluindo investigação sobre eventual uso de recursos da 13ª Vara Federal de Curitiba para a realização da obra [20].


Em 22 de julho, o Corregedor Nacional do Ministério Público, Orlando Rochadel, indeferiu os embargos de declaração opostos nos autos da Reclamação Disciplinar nº 1.00490/2019-06 pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. Os embargos haviam sido opostos em 15 de julho, contra o arquivamento sumário da representação feita pela entidade em 3 de julho, solicitando ao Conselho a apuração das condutas dos procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato.


Em contraste com o despacho de 10 de julho, quando, a pedido de outros conselheiros, instaurara reclamação disciplinar em face de integrantes da força-tarefa, a partir das publicações do The Intercept, o Corregedor houve por bem arquivar a reclamação disciplinar apresentada pela ABJD e rejeitar os embargos de declaração opostos, ao argumento de que a imputação de violação de dever funcional a membros do Ministério Público fora "amparada, exclusivamente, em notícia de sítio eletrônico da internet anunciando que obteve, de fonte dita anônima, mensagens trocadas pelo aplicativo Telegram entre Procuradores da República e Membro do Poder Judiciário Federal" e, por isso, "inexiste certeza sobre a existência dessas mensagens, tampouco sobre a sua não adulteração". Considerou que os elementos de informação são estéreis para os fins de apuração disciplinar, uma vez que, considerada "a inexistência de autorização judicial para a interceptação (telefônica ou telemática) das referidas mensagens, a obtenção destas afigurou-se ilícita e criminosa, o que a torna inútil para a deflagração de investigação preliminar". Declarou "a imprestabilidade da prova ilícita por derivação (Teoria dos frutos da árvore envenenada)". O Corregedor foi alem. Afirmou que as mensagens em questão, ainda que se admitisse que existissem e que correspondessem à realidade, e que tivesse havido autorização judicial para a interceptação, não revelam ilícito funcional [21].


Em 28 de julho de 2019 havia os seguintes procedimentos administrativos disciplinares abertos em face de membros da força-tarefa do Ministério Publico: número 1.00214/2019-85, requeridos Deltan Dallagnol, Athayde Ribeiro Costa, Felipe D´Elia Camargo, Isabel Cristina Groba Vieira, Jerusa Burmann Viecili, Júlio Carlos Motta Noronha, Laura Tessler, Orlando Martello Junior, Paulo Roberto Galvão, Roberson Henrique Pozzobon, Antônio Carlos Welter e Januário Paludo; número1.00509/2019-15, requeridos Deltan Dallagnol, Paulo Roberto Galvão e Roberson Henrique Pozzobon. Não é possível obter informações sobre os processos, uma vez que estão gravados por sigilo ou acesso restrito, conforme advertência dada no sítio eletrônico do CNMP.


Em face apenas de Deltan Dallagnol hvaia os processos números 1.00212/2019-78, 1.00214/2019-85, 1.00428/2019-15, 1.00490/2019-06, 1.00546/2019-32, 1.00546/2019-32, todos sigilosos ou de acesso restrito. Apenas o processo número 1.00898/2018-99 se encontra acessível. Tem por objeto manifestação pública indevida do procurador, sobre a conduta de ministros do Supremo Tribunal Federal, em entrevista concedida ao Jornal da CBN da Rádio CBN. No dia 27.6.18 o CNMP decidiu prorrogar por 90 dias o prazo de conclusão do procedimento.


Por fim, pende de decisão procedimento administrativo disciplinar instaurado em face do procurador Diogo Castor de Mattos [22] (Processo número 1.00273/2019-07), também sigiloso ou de acesso restrito [23].


5. Conclusões


Os elementos apresentados neste texto mostram que, ao menos desde 2016, os integrantes da força-tarefa da Lava Jato vêm sendo acusados de cometimento de faltas funcionais e até da prática de crimes.


O Conselho Nacional do Ministério Público, até as revelações do site The Intercept Brasil, arquivara, sistematicamente, as reclamações disciplinares recebidas. Apenas um procedimento administrativo disciplinar fora instaurado pelo Corregedor Nacional, mas a portaria de instauração não foi referendada pelo Conselho. O Corregedor do Ministério Público Federal também promovera o arquivamento de reclamações a ele apresentadas.


A Procuradora Geral da República e presidente do CNMP, mesmo após as divulgações dos diálogos dos procuradores, arquivou notícia-crime apresentada pelo Coletivo Advogados e Advogadas pela Democracia e, em nota, fez questão de reiterar apoio ao trabalho da força-tarefa, como se nada houvesse acontecido, preferindo focar a atenção no discurso da ilegalidade da obtenção das mensagens vazadas.


O CNMP apresenta histórico de reduzida atuação punitiva, especialmente em face de membros do Ministério Público da União, como são os Procuradores da República[24]. De qualquer modo, a partir dos vazamentos das mensagens pelo The Intercept, ao menos dez procedimento administrativos disciplinares foram instaurados contra vários integrantes da força-tarefa, em especial do procurador Deltan Dallagnol.


As condutas reveladas nas mensagens divulgadas são gravíssimas e, em tese, configuram faltas funcionais e até crimes. Houvesse o CNMP coibido, na origem, a atuação faltosa de alguns procuradores, seguramente os fatos não teriam assumido a dimensão que agora ostentam. Oportunidades para isso não faltaram.


Seria de se esperar que o Conselho, no exercício da competência que lhe é reservada pela Constituição, apurasse, com rigor e celeridade, os fatos divulgados, punisse os faltosos e preservasse a dignidade do Ministério Público. Mas os sinais percebidos até aqui indicam o contrário. O Corregedor Nacional do Ministério Público já adotou a tese de que não há certeza de que as mensagens divulgadas realmente existiram ou se foram adulteradas. Entende que, ainda que existentes e não adulteradas, não valeriam como prova, uma vez que a obtenção delas afigurou-se "ilícita e criminosa", remanescendo, assim, imprestáveis. O pior: considera que, ainda que fossem válidas, as conversas não revelam a prática de qualquer ilícito funcional. É de estarrecer.


Não à toa, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia declarou que o Corregedor "se acovarda diante da gravidade das mensagens envolvendo membros do Ministério Público" e que "tomou uma decisão antidemocrática e parcial", desvirtuando "a própria razão de existência do CNMP, ao não submeter aos seus pares as representações protocoladas pela ABJD".

* Artigo escrito e 28 de julho de 2019 e integrante da obra coletiva "Relações Obscenas: as revelações do The Intercept/BR", coordenada por Wilson Ramos Filho, Maria Inês Nassif, Hugo Melo Filho e Míran Gonçalves, publicada pela Editora Tirant le Blanc.


REFERÊNCIAS


[1] Os membro são os seguintes: Deltan Martinazzo Dallagnol (Coordenador), Alexandre Jabur, Antônio Augusto Teixeira Diniz, Athayde Ribeiro Costa, Felipe D´Elia Camargo, Isabel Cristina Groba Vieira, Jerusa Burmann Viecili, Juliana de Azevedo Santa Rosa Câmara, Júlio Carlos Motta Noronha, Laura Tessler, Marcelo Ribeiro Oliveira, Orlando Martello Junior, Paulo Roberto Galvão, Roberson Henrique Pozzobon, Antônio Carlos Welter e Januário Paludo. Já atuaram na força-tarefa: Andrey Borges de Mendonça, Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos.

[2] https://jornalggn.com.br/crise/o-sistema-de-justica-e-os-orgaos-de-controle-o-corporativismo-como-metodo-no-cnj-e-cnmp-por-tania-maria-de-oliveira/. Acesso em 28.7.19.

[4] Idem.

[7] Consulta ao currículo de Deltan Martinazzo Dallagnol na Plataforma Lattes mostra que o procurador proferiu apenas 24 palestras ou aulas em dez anos, de 2004 a 2014, antes de coordenar a força tarefa da Lava Jato. Disponível em http://lattes.cnpq.br/9187349340155546. Acesso em 28/7/19.

[8] Nenhum destes processos pode ser acessado no sítio eletrônico do CNMP.

Os fundamentos para a instauração foram os seguintes:

"A ampla repercussão nacional demanda atuação da Corregedoria Nacional. A imagem social do Ministério Público deve ser resguardada e a sociedade deve ter a plena convicção de que os Membros do Ministério Público se pautam pela plena legalidade, mantendo a imparcialidade e relações impessoais com os demais Poderes constituídos.

Sem adiantar qualquer juízo de mérito, observa-se que o contexto indicado assevera eventual desvio na conduta de Membros do Ministério Público Federal, o que, em tese, pode caracterizar falta funcional, notadamente violação aos deveres funcionais insculpidos no art. 2362 da Lei Complementar nº 75/93.

Com efeito, neste momento inicial, é necessária análise preliminar do conteúdo veiculado pela imprensa, notadamente pelo volume de informações constantes dos veículos de comunicação.

Assim, presentes os requisitos de admissibilidade, é exigência do Regimento Interno do Conselho Nacional do Ministério Público a instauração de Reclamação Disciplinar, consoante o art. 743, caput, do Regimento Interno do CNMP".

[22] Segundo a Época, o hacker Walter Delgatti Neto, que supostamente teve acesso a mensagens privadas do grupo de procuradores, afirmou, em depoimento à Polícia Federal, que “o procurador Diogo Castor de Mattos foi afastado da força-tarefa da Operação Lava Jato no Paraná porque participou do financiamento de outdoors com uma campanha de apoio à Lava Jato, que os próprios colegas entenderam ser conflituoso com o exercício da função”. O Corregedor Nacional do CNMP arquivara representação do Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia que tinha por objeto o referido outdoor, por entender que não fora financiado por membro do Ministério Público. Disponível em https://www.viomundo.com.br/denuncias/coletivo-de-advogados-protocola-no-cnmp-pedido-de-retirada-imediata-da-propaganda-da-lava-jato-parana-veja-integra.html. Acesso em 28.7.19.

[24] Um exemplo eloquente: fui Conselheiro do CNMP de 2005 a 2005, na primeira composição. Por acaso, coube-me a relatoria do primeiro processo apresentado, um pedido de revisão disciplinar em face dos Procuradores da República Luiz Francisco de Souza e Guilherme Schelb (Processo n.§ 0.00.000.000001/2005-77). Mercê de esforço hercúleo, logrei instruir e levar o feito a julgamento, em maio de 2007. O autor os acusava de uma série de faltas funcionais e crimes, como falsidade ideológica, violação de sigilo funcional prevaricação, falso testemunho, coação no curso do processo, exercício de atividade político-partidária, extravio de documentos, exercício funcional ilegalmente antecipado, exercício arbitrário das próprias razões, entre outros. O Conselho reconheceu o cometimento da falta de exercício de atividade político-partidária pelo procurador Luiz Francisco de Souza, aplicando-lhe a pena de suspensão por 45 dias, e de omissão de declaração de suspeição pelo procurador Guilherme Schelb, aplicando-lhe a sanção de censura. Sucessivos embargos declaratórios foram rejeitados, mantendo-se a decisão original. Inconformados, os requerido impetraram mandados de segurança no Supremo Tribunal Federal, aos quais foi negado seguimento.

Assim, em 2016, o Conselheiro que, por último, assumiu a relatoria, determinou a aplicação das penas pelo Corregedor Geral do Ministério Público Federal. A providência chegou a ser adotada em relação ao procurador Guilherme Schelb. Ocorre que o procurador Luiz Francisco, em 2017, requereu a decretação da extinção de punibilidade, por se haver operado a prescrição intercorrente. O pedido foi acolhido, monocraticamente. Ato contínuo, o procurador Guilherme Schelb requereu a extensão dos efeitos da referida decisão ao seu caso, o que também foi deferido, em outubro de 2017. Desse modo, após 12 anos de tramitação, o resultado foi a não aplicação de qualquer sanção aos requeridos.

A apertada síntese de um processo com mais de 3000 folhas demonstra, sem margem para dúvida, a absoluta dificuldade, talvez a inviabilidade, de punição de membros do Ministério Público Federal.

Curiosamente, às fls. 3055 dos autos, encontra-se certidão dando conta de que cópia parcial dos autos foi encaminhada ao procurador Deltan Martinazzo Dallagnol, por solicitação deste, em 22 de março de 2018. Em seguida, foi solicitada a cópia integral: “trata-se de pedido feito pelo coordenador da Força Tarefa da Lava Jato, Dr. Deltan Dallagnol” (f. 3056). Em 27 de março de 2018 o processo foi enviado ao arquivo. Estaria o procurador Deltan Dallagnol procurando conhecer o caminho das pedras, a ser trilhado em futuro próximo?

 
 
 

Comments


bottom of page